quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Observatório da Cidadania

O advogado Sérgio Muylaert, amigo e leitor deste Blog, publica um oportuno e necessário artigo na Tribuna da Imprensa de hoje. A questão da anistia ocupa as páginas dos principais jornais do país, pela importância do tema reproduzimos o texto que substancia o debate e contribui para o aperfeiçoamento democrático.



Anistia política e mudanças na lei
Sérgio Muylaert

Ao se completar mais um aniversário da lei de anistia de 1979 cumpre a todos um dever elementar em respeito do que esta norma teria representado nos 29 anos de sua vigência. O pensamento em torno do qual se questiona as possibilidades de alteração do texto com a revisão de suas linhas mestras deve ter as políticas públicas sobre os direitos humanos como meta.
Se por uma lado existem as formas de conceber a anistia como fenômeno pronto à serenização dos espíritos e com este surgisse a denominada "paz perpétua" conforme a idéia de Kant, o aperfeiçoamento das instituições públicas no estágio atual é avistado, por outro lado, na linha do horizonte. Não significa que estamos a afirmar a sua invalidação sobre o que concretamente já foi feito no tormentoso caminho.
Basta lembrar repercussão do encontro realizado há menos de uma quinzena, no Ministério da Justiça, em Brasília. Lá compareceram o próprio ministro Tarso Genro e o ministro Paulo Vannuchi, da Secretaria Especial para assuntos sobre Direitos Humanos da Presidência da República. Além desses nomes, um espectro da sociedade civil com a presença do presidente nacional da OAB cuja palavra acentua a necessidade de responsabilização dos agentes públicos que praticaram violações de direitos humanos no período recente do regime militar.
A República Federativa do Brasil não desconsidera as orientações do Direito Internacional Público e o Direito Humanitário. O que pode ter sido um avanço para o estado democrático de direito este reconhecimento formal deve servir de pauta de discussão na hipótese de proposta para se alterar a própria lei de anistia.
Um dos princípios reitores a serem administrados está a imprescritibilidade de qualquer delito contra a humanidade, como tem admitido na doutrina moderna, seja ele sob a forma de genocídio, etnocídio ou mesmo de ecocídio, ao referir norma de proteção ambiental, no rol de crimes hediondos. O registro se reporta a Operação Condor, conforme artigo publicado na Tribuna da Imprensa de 19/1/08, por este mesmo autor.
Há, por outro lado, quem refute o ganho político ao amparo da lei de anistia de agosto de 1979, sem outra compreensão, como se vidas humanas obtivessem medição unicamente pecuniária, após o sofrimento das perseguições.
O intento veio em face do reconhecido desgaste na base do regime, instaurado em 1964, por favorecer claramente o processo de democratização bem mais do que ao pleito de cada qual. Sob a premissa de que o país viesse a reconstruir suas bases para o contrato social os avanços não contemplados foram revistos na Emenda Constitucional nº 26 de 1985.
No passo seguinte trouxe a Constituição Federal, de 1988, o alento na direção proposta para a anistia política, em especial, com os artigos 8º e parágrafos 1ª a 5º, e art. 9º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, à luz dos instrumentos jurídicos de direito internacional.
A necessidade de observância das regras sobre a anistia se impôs ao legislador federal que desse modo editou Medida Provisória nº 2.151, de 2001, logo revogada pela MP nº 65, de agosto de 2002, até se converter na atual Lei nº 10.559, de 13 de novembro de 2002. O movimento pela anistia evidenciou a perspectiva de reconstrução de um direito à reparação econômica dos perseguidos políticos vitimados pelo golpe armado para depor um governo democraticamente eleito.
Cumpre a norma legal em vigor o seu papel perante a sociedade sem óbice a que falhas ou deficiências interpretativas lhe possam ser atribuídas. No entanto a memória nacional se ressente dos efeitos da repressão política para lá de um valor indenizatório econômico aos atingidos diretamente.
Somente com a construção uma ordem jurídica de proteção efetiva se pode reparar e preservar a história dessa mácula de padecimento, a par de serem desvendados o uso indevido dos bens pertencentes às Forças Armadas e suas formas, pelas quais esses mesmos bens teriam sido empregados, por agentes públicos, para validar a ação do estado brasileiro, em desafio às proibições que as normas internacionais repudiam.
Subjacente ao fenômeno da ocultação existe o clamor para a tragédia que se abateu sobre os familiares de mortos e desaparecidos políticos. A efetividade dos direitos humanos deve recair sobre toda a sociedade brasileira de modo a que o inegável aperfeiçoamento das instituições pátrias se harmonize com os documentos jurídicos de validade internacional de que o Brasil é signatário.

Sérgio Muylaert é membro da OAB, do Instituto dos Advogados Brasileiros e vice-presidente da Comissão de Anistia (2004-fev. 2008)

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